segunda-feira, 21 de junho de 2010

.o grito

Foto: Hugo Moura

Hoje tudo se resume a um grito.

Até há bem pouco tempo, este seria um momento de nervos, flexibilidade, laca, exercício, brilhantes, músculos doridos, maillot, lantejoulas, maquilhagem, aperto no estômago, treinar e repetir vezes sem conta as partes mais difíceis, repetir o exercício mentalmente, cumprir à risca o aquecimento, como nunca, vendo a flexibilidade aumentar a olhos vistos, e ultrapassar barreiras nunca outrora ultrapassadas, metas nunca antes superadas, não em treinos. Hoje, agora, seria o momento de fazer justiça à expressão 'dei o meu melhor'. Seria o momento de dar tudo de mim, deixar metade do que sou no praticável, fazer valer naqueles 3 minutos o investimento de horas e horas de trabalho. Realmente, foi isso que aconteceu na última vez que estive nesta situação. Foi exactamente isso. Dei tudo, tudo o que tinha e um bocado do que não tinha, e por isso, hoje, tudo se resume a um grito. Assim, hoje acompanho, observo, encorajo, desenho.

Chego cedo e trabalho em preparativos, falo com as treinadoras, dedico-me à minha tarefa, e elas começam a chegar. E aquele cheiro... aquele doce cheiro a ginástica, cuja doçura só percebo agora, que não faço parte do calendário. Respiro-o, sentido a laca, normalmente indesejada, hoje perfeita. Vejo-as aquecer, superar barreiras, treinar o exercício, repetir o que é mais difícil, mudar de roupa, maquilhar, e tudo começa. No irónico papel de locução, apresento as minhas colegas que avançam para mostrar o que valem. No fim, como sempre, o nosso grito. Chego ao praticável num voo desde o meu lugar e grito. Sim, ainda tenho um lugar aqui. Enquanto puder, sou e serei ginasta. Porque ali, na família que é aquela equipa, no abraço que é aquele grito, eu sei quem sou. Não vejo a hora de ter a lesão resolvida e estar ali, a gritar, com maillot, brilhantes, o cabelo cheio da abençoada laca, e o nervoso miudinho característico daquele contexto. Para que na próxima vez não seja só um grito. Porque por grandioso que seja, não é suficiente. Ainda não.

Para ti, minha fiel amiga.
Que estejamos as duas devidamente equipadas para o próximo grito.

domingo, 20 de junho de 2010

.foco

Estou na entrada do Palácio Anjos, à espera de uma preciosa e fiel amiga para um café. À minha esquerda tenho a entrada principal, o terminal dos autocarros, a estação do comboio, o terminal do eléctrico, a bomba de gasolina, fumo, buzinas, travagens bruscas, gritos, posso ouvir e cheirar toda a poluição. À minha direita tenho o palácio, o jardim, a esplanada, os pássaros, as famílias que aproveitam o sol tímido que podemos ver, reflectido em cada centímetro deste espaço, os velhotes que jogam cartas, posso ouvir e cheirar toda a natureza. Tenho duas realidades opostas que se encontram e confrontam exactamente no ponto onde eu estou. E eu estou a admirar a natureza. O barulho na estrada é muito maior, a agitação é completamente inquietante, mas eu hoje, aqui e agora, escolho maravilhar-me com a natureza. O que faz de mim o que sou não é o que me rodeia, mas a minha decisão de focar na estrada ou no jardim. E hoje, estrada, desafio-te. Venham acidentes, trânsito, buzinas, eu não tenciono sequer olhar. Hoje o jardim é meu, os pássaros vieram cantar, para mim, Deus está aqui, e eu quero ouvi-Lo.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

.salmo 30.5

16.Junho.2010
     Hoje escrevo a preto. A ausência de cor com a confusão das emoções que ocupam o meu pequeno corpo (aparentemente, demasiado pequeno para tudo isto) só é descritível em preto. Tudo isto ocupa demasiado espaço, não deixando espaço livre para os meus órgãos, que se debatem e apertam uns contra os outros e, numa luta constante, rejeitam a comida e impedem-me de dormir, sufocando cada inspiração e forçando a saída do pouco ar que me resta. O meu cérebro, como que atingido por um tornado, empurra-se contra o crânio e tenta saír, por algum lado, causando dores capazes de enlouquecer qualquer um. Todo o meu corpo dói, muito. 'O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.' ... a ver vamos.

17.Junho.2010
     Não é certamente esta manhã. O Sol já vai alto e a alegria ainda não chegou. Hoje também escrevo a preto.

terça-feira, 15 de junho de 2010

.sobre as águas

Insististe para que avançasse sozinha, irias lá ter
Na altura não percebi o motivo, confesso.
Tive que ultrapassar obstáculos, sem experiência nem saber
Pensei que me tinhas esquecido, que já não me irias proteger
Faz a Tua vontade em mim mas não me abandones, é só o que peço.
Conquistando os meus sentidos, o medo invade cada parte de mim
Respiro-o e dou-lhe as boas vindas, numa bebedeira de pavor
Já não penso com clareza e sinto que foi tudo longe demais
Ainda assim, brindo ao anunciar de um possível fim
E bebo, de um trago, ensaiando meia dúzia de palavras finais
Se não resolver nada, pelo menos alivia esta dor.
Afectada pela tempestade, tento não atingir nenhum rochedo
E é nisto que Tu chegas, sobre as águas, inesperado.
Sabia que virias, mas a forma da Tua chegada era ainda um segredo
E eu, sem Te reconhecer, tenho (tanto) medo
Até que Te revelas, e chega a ser ridículo o meu olhar assustado
Com a Tua identidade, a minha falta de fé é revelada
Porque Tu cuidas, e Tu sabes, e eu não avancei 'sozinha'.
Ao contrário do que pensei, não era a única na estrada
Posso agora ver em cada situação a Tua pegada
Grande, firme, sempre junto à minha.
A Tua grandeza é tão única que fascina
E eu desejo juntar-me a Ti e experimentar esse poder
Deixas-me avançar, supero o vento que o meu sonho desafina
Já sobre as águas e vendo as ondas, chega uma dúvida clandestina
Que rouba a aparente fé que eu até aí conseguira manter.
O que temia torna-se real, e sou arrastada para o fundo
Sufocada por circunstâncias, acabo submersa no vastíssimo mar
Eu sabia (e sei) que na palma da Tua mão está o mundo
E avancei confiante, até duvidar. uma fracção de segundo.
E foi esta dúvida (não a tempestade) que acabou por me afogar.
O meu futuro não depende do que me rodeia
Não está assente em vitórias ou em mágoas
Cada um colhe o que semeia
Perdoa-me, Pai, é nisso que este poema se baseia,
Porque ainda não tive fé suficiente para andar sobre as águas.


Mateus 14.22-33 'Jesus anda sobre as águas'
      22Logo em seguida obrigou os seus discípulos a entrar no barco, e passar adiante dele para o outro lado, enquanto ele despedia as multidões.  23Tendo-as despedido, subiu ao monte para orar à parte. Ao anoitecer, estava ali sozinho.  24Entrementes, o barco já estava a muitos estádios da terra, açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário.  25À quarta vigília da noite, foi Jesus ter com eles, andando sobre o mar.  26Os discípulos, porém, ao vê-lo andando sobre o mar, assustaram-se e disseram: É um fantasma. E gritaram de medo.  27Jesus, porém, imediatamente lhes falou, dizendo: Tende ânimo; sou eu; não temais.  28Respondeu-lhe Pedro: Senhor! se és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas.  29Disse-lhe ele: Vem. Pedro, descendo do barco, e andando sobre as águas, foi ao encontro de Jesus.  30Mas, sentindo o vento, teve medo; e, começando a submergir, clamou: Senhor, salva-me.  31Imediatamente estendeu Jesus a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?  32E logo que subiram para o barco, o vento cessou.  33Então os que estavam no barco adoraram-no, dizendo: Verdadeiramente tu és Filho de Deus.